quinta-feira, janeiro 18, 2007

SAUDADES DO CINEMA DA RETOMADA (Outubro 2006)


O mal que o Governo Lula fez ao cinema brasileiro nesses últimos 3 anos e meio só é comparável ao feito pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello ao extinguir a Embrafilme 15 anos atrás, numa das canetadas mais irresponsáveis que a cultura brasileira tem notícia.

Graças àquele ato inclassificável, os realizadores brasileiros perderam completamente o rumo das produções que estavam em andamento.

Produtores de cinema ficaram pelo menos 2 anos parados, aguardando definições do Ministério da Cultura, sem saber como retomar suas atividades a médio prazo.

Diretores de cinema consagrados, como Arnaldo Jabor e Walter Lima Jr, acharam melhor mudar de profissão, enquanto outros simplesmente mudaram de mala e cuia para os Estados Unidos ou para a Europa.

Ao longo dos 8 anos da administração Fernando Henrique Cardoso, o cinema brasileiro renasceu. Conseguiu vencer uma velha resistência de certos setores do público, que pareciam ter alergia a filmes brasileiros, e passou a emplacar bilheterias impressionantes de forma sistemática nas salas de cinema do todo o Brasil.

De uma hora para outra, os filmes brasileiros passaram a ser disputados a tapas por distribuidoras e redes exibidoras, as mesmas que antes rechaçavam as produções brasileiras pelo simples fato de serem "filmes brasileiros", e que só eram exibidos por conta da obrigatoriedade de uma lei – que, diga-se de passagem, foi para o ralo na mesma canetada que havia extinguido a Embrafilme.

Esse novo momento do cinema brasileiro foi batizado de forma genérica como "Cinema da Retomada", e ganhou o mercado internacional através do Sundance Film Festival, coordenado por Robert Redford, que sentiu o potencial desses filmes, e apostou neles.

Com isso, despertou o interesse de distribuidores e exibidores do mundo inteiro, e então os filmes brasileiros passaram a freqüentar as salas de cinema das capitais americanas, européias e asiáticas.

O "Cinema da Retomada" aos poucos revelou-se capaz de abrigar tanto filmes neo-realistas como "Central do Brasil" quanto comédias históricas como "Carlota Joaquina", dramas urbanos como "Copacabana", biografias como "Villa-Lobos", comédias de situações como "Bossa Nova", thrillers como "O Outro Lado da Rua", dramas políticos como "O Que ë Isso Companheiro" e "Brasília 18%", e road movies como "O Caminho das Nuvens".

Todos de altíssimo gabarito artístico. Detalhe: todos os filmes mencionados acima tiveram suas pré-produções iniciadas antes da chegada de José Dirceu ao poder em Brasília.

Empossado Primeiro Ministro todo-poderoso nos primeiros 2 anos da atual administração federal, Dirceu manteve o Ancine sob sua jurisdição e não sossegou enquanto não desfez tudo o que estava funcionando (muito bem) na política de incentivos ao cinema brasileiro na administração anterior.

Sua primeira "proposta cultural" para os produtores de cinema brasileiros foi meramente "política", e totalmente voltada para o mercado exibidor interno: Dirceu "sugeriu" que produções glamurizando as ações da esquerda nos Anos de Chumbo seriam muito bem-vindas, assim como dramas ou comédias sociais politicamente de acordo com as propostas do Governo Lula, e – claro – cinebiografias charmosas de ícones da esquerda brasileira.

Ou seja, Dirceu adotou sem o menor pudor os mesmos modelos culturais que Stalin e Castro aplicaram em outras épocas. Deixou claro a todos os produtores brasileiros que projetos de filmes que se encaixassem nesses perfis não teriam dificuldades em conseguir incentivos do Governo Federal.

Com isso, lá se foi a diversidade e o prestígio internacional do nosso Cinema da Retomada. Em menos de 2 anos, o cinema brasileiro conseguiu regredir aos Anos 70, quando o Governo liberava verbas impressionantes para produções ufanistas comandadas por realizadores prá lá de duvidosos, como Paulo Thiago e Ipojuca Pontes – como "A Batalha Dos Guararapes" e "Canudos" – , e negava dinheiro para talentos como Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues e Nelson Pereira dos Santos.

Graças a essa política cultural inspirada por Georg Lukacs, e abençoada pelos comandantes do PT, que tem as chaves dos cofres das estatais, hoje o cinema brasileiro segue sufocado por uma dieta temática lamentável, onde comédias ligeiras – que dispensam incentivos e se garantem nas bilheterias – se alternam com cinebiografias que são verdadeiros abacaxis artísticos, como o recente (e caríssimo) "Olga", e esse constrangedor "Zuzu Angel" (em cartaz na cidade).

Lembram dos anos 70 e 80, quando as pessoas reclamavam de que o cinema brasileiro era autoral demais, e que não haviam roteiristas de gabarito no mercado, só diretores escrevendo roteiros?

Pois bem: o roteiro de "Zuzu Angel" é do próprio diretor Sérgio Rezende, e é de um primarismo maniqueísta quase inacreditável. Tenta conjugar a todo custo uma narrativa cronológica (montada em um longo flashback) com pequenos "sub-flashbacks" extremamente confusos, e ainda algumas "cenas de sonho" exemplarmente mal posicionadas na narrativa.

Quebra a cara em grande estilo. Um desastre que qualquer roteirista iniciante seria capaz de evitar com um mínimo de bom senso artístico. Verdade seja dita: com todo o aparato (e o dinheiro) que cercou a produção de "Zuzu Angel", é difícil entender como o filme pode ser tão ruim. Tanto as palavras quanto às imagens são de um didatismo enervante.

Tudo o que é mostrado na tela, é falado também, para que o público de classe média (a quem o filme é destinado) jamais duvide do quanto os militares e a direita da época foram malvados, e do quanto os guerrilheiros de esquerda eram bons e imaculados. E, claro, charmosos. "Zuzu Angel" começa torto já a partir de título.

É na verdade um filme sobre o filho de Zuzu, o guerrilheiro urbano Stuart Angel (amigo de Zé Dirceu), do grupo de Lamarca, morto por oficiais especiais da Aeronáutica depois de uma longa sessão de tortura, na fase final do nada saudoso reinado do general Emílio Garrastazu Médici.

O pessoal que cuidou do marketing da produção do filme sacou logo de cara que a figura de Stuart por si só não teria apelo com o público feminino, e – para tentar repetir o sucesso de público de "Olga" – preferiram batizar o filme com o nome de Zuzu Angel. Mas não se enganem: o filme é sobre Stuart Angel. Um caso típico de propaganda enganosa.

Apesar de Zuzu Angel ter sido uma grande estilista de moda, uma "self made woman" com uma história de vida admirável nas décadas de 60 e 70, nada disso interessa ao filme – Zuzu só interessa enquanto mãe de Stuart.

Nem a transformação da "Zuzu costureira que veio de Barbacena" na "Zuzu socialite carioca", e depois na "Zuzu combativa" é mostrada com sutilezas dramáticas no filme de Sérgio Rezende. E olha que a atriz Patrícia Pillar tem predicados mais do que suficientes para revelar essa transformação com maestria artística. Mas não precisou.

Sérgio Rezende preferiu dispensar as melhores qualificações de Patrícia. Maestria artística nunca foi o seu forte. Sua filmografia chinfrim é a maior prova disso. "Zuzu Angel" é cinema de propaganda política da pior espécie.

Os diálogos, de tão constrangedores, beiram o bizarro. As personagens – Zuzu, Elke Maravilha, suas filhas – praticamente inexistem, tamanha a falta de densidade psicológica com que foram brindadas pelo roteiro de Sérgio Rezende.

Além disso, a reconstruição de época é fraquíssima, limitada apenas aos figurinos, ao Karmann-Ghia e à mobília da casa de Zuzu. Não se vê na tela a grana do orçamento (nada desprezível) do filme.

Assim como "Olga", de Jayme Monjardim, "Zuzu Angel" não tem a menor chance de engatar uma carreira internacional. Seria ridicularizado, e nem sequer passaria das pré-seleções dos festivais internacionais. E a assinatura de Sérgio Rezende só piora a situação.

Em 25 anos de carreira como diretor de cinema, ele conseguiu uma proeza tão duvidosa quanto impressionante: desde sua estréia em 1982 com "O Sonho Não Acabou" – um drama geracional pop totalmente rodado em Brasília na cola do sucesso do seriado de TV Globo "Ciranda Cirandinha", e bastante elogiado na época –, ele vem produzindo um abacaxi atrás do outro, sempre desperdiçando o trabalho de ótimos atores, em filmes facilmente esquecíveis, como "O Homem Da Capa Preta", "Doida Demais", "Batalha de Canudos", "Lamarca", "Mauá", e o recente "Onde Anda Você".

Mas "Zuzu Angel" é ainda pior que todos esses filmes juntos. Os trinta anos que separam os dias de hoje da morte de Zuzu Angel mereceriam no mínimo uma discussão amadurecida.

No entanto, Sérgio Rezende optou por enfocar em seu filme a trajetória de Stuart e Zuzu como se estivéssemos em 1980, na abertura política do General Figueiredo, e não em 2006, em uma democracia totalmente consolidada.

Por trás disso, é muito fácil reconhecer um referencial histórico deliberadamente defasado, uma postura artística propositadamente imatura, e uma atitude política imperdoavelmente desonesta, na medida que mascara com um drama familiar uma modalidade extremamente tosca de propaganda política.

"Zuzu Angel" é um fiasco artístico monumental. Não podia ser diferente, vindo de alguém como Sérgio Rezende, e com a bênção de Zé Dirceu. Merece ser um fiasco comercial nas mesmas proporções.

Um comentário:

Slain disse...

muito bom o texto.
Zuzu Angel é o filme que não vi e não gostei.